Não adianta se enganar: A conta chega

A ilusão sempre parece tentadora: ela nos protege dos fatos incômodos e deixa tudo mais fácil de aceitar.
Só que, de tempos em tempos, essa tentação cobra o seu preço.
Foi assim em vários momentos da história, e quase sempre porque muita gente preferiu acreditar em versões convenientes da realidade em vez de encarar os dados duros.
Hoje, a confusão fica ainda maior.
Redes sociais entregam manchetes feitas sob medida para cada um, robôs empurram mentiras até virarem “verdades” de tanto serem repetidas e, de resto, se algo não combina com a nossa visão de mundo, basta dizer que é “só opinião”.
Parece inofensivo? Não é.
Quando escapamos dos fatos, pagamos um preço que pode levar anos ou gerações para ser quitado.
Carisma que hipnotiza
Pense nos anos 1930. Em Moscou, homens eram filmados confessando crimes que nunca cometeram. Milhares de pessoas assistiam às transmissões sem questionar nada, certos de que o governo sabia o que fazia.
No mesmo período, na Europa central, um certo ministro de propaganda dizia que, se você contasse uma mentira grande o suficiente e repetisse sem parar, o público acabaria aceitando. O truque deu certo, e não foi só lá.
O padrão se repete: um líder com fala sedutora abre a porta; o resto acontece porque gente comum terceiriza o trabalho de duvidar. Quando isso vira hábito, todo questionamento passa a parecer traição. O resultado? Vozes críticas somem, e o campo fica livre para decisões catastróficas que afetam todo mundo.
A fábrica de narrativas
Se na década de 1930 o microfone oficial já era poderoso, imagine hoje, com celulares em cada bolso.
A lógica é :
Produção: alguém, um político, uma “página de notícias” ou um perfil anônimo, solta uma história fácil de engolir.
Amplificação: robôs, influenciadores e plataformas jogam essa história na nossa cara o tempo todo, porque isso dá clique e mantém as pessoas presas à tela.
Normalização: depois de ver a mesma coisa mil vezes, a gente começa a achar que deve haver algo de verdadeiro ali.
Em Myanmar, por exemplo, os militares bloquearam o Facebook alegando que havia “fake news demais”. Ao mesmo tempo, espalhavam posts falsos sobre as eleições de 2020 para justificar o golpe. Resultado: parte da população passou a viver numa realidade paralela, certa de que a intervenção era temporária e “necessária” para salvar a democracia.
O mecanismo não muda muito de país para país. O formato é que varia: às vezes vem em cadeia de WhatsApp, às vezes em vídeo “bombástico” no YouTube. Mas o efeito final que é gente acreditando num mundo inventado, é o mesmo.
Rumores ontem, bolhas hoje
Antigamente, rumores nasciam nas feiras ou nos cafés. Hoje, um único post é capaz de viajar o planeta em minutos.
As plataformas adoram conteúdo que mexa com o nosso medo ou a nossa raiva, porque emoções fortes mantêm o usuário rolando a tela. Quem governa usando a guerra como estratégia entende isso e aproveita a maré.
A Freedom House (Uma das organizações que monitoram a situação da democracia em cada país) aponta que, há 19 anos seguidos, a liberdade no mundo só recua.
Em 2024, sessenta países pioraram seus indicadores democráticos. Parte dessa queda se explica pelo uso político da desinformação.
Se cada grupo vive fechado na sua bolha, sem compartilhar nem o básico dos fatos, fica quase impossível chegar a acordos mínimos.
É aí que líderes autoritários ganham espaço: enquanto a população discute quem tem “a verdade”, eles concentram poder.
Desatar o nó
Como sair desse ciclo?
Primeira etapa: admitir que a mentira sistemática não é descuido, é ferramenta de controle. Ela fragiliza tudo que possa fiscalizar o governo como imprensa, tribunais, órgãos de auditoria. (Lembrando que precisamos sempre ficar vigilantes também sobre os abusos e ferramentas utilizadas por essa turma, muitas vezes conectadas e a serviço de algum grupo político).
Segunda etapa: lembrar que checar informação é trabalho em equipe. O jornalista que vasculha dados, o pesquisador que revê estatísticas, o juiz que exige provas, o cidadão que lê além da manchete, cada um é peça de um mesmo quebra-cabeça.
Autocratas sabem disso e tentam cortar esses laços.
Chamam repórteres de “inimigos”, dizem que especialistas são “elitistas” e apresentam qualquer crítica como traição. Se a gente compra essa narrativa, perde as balizas que ajudam a separar fato de boato. Quando percebe, o barco já está sem bússola.
Perguntas para fazer a nós mesmos
Que notícia pareceu boa demais (ou ruim demais) para ser verdade e mesmo assim você compartilhou sem olhar a fonte?
Quem sai ganhando quando dados desconfortáveis são rebatizados de “histeria”?
Qual alerta que você ignorou no passado acabou virando problema sério?
Dicas para mergulhar mais fundo
Livro: Origens do Totalitarismo — Hannah Arendt
Explica por que multidões desorientadas abraçam histórias simples e perigosas.
Livro: Como as Democracias Morrem — Levitsky & Ziblatt
Mostra, passo a passo, como regras informais vão se desfazendo até o sistema entrar em colapso.
Relatório: Freedom in the World 2025 — Freedom House
Retrato anual do recuo (ou avanço) de liberdades no planeta.
Estudo da OMS: Infodemia (2020)
Analisa como excesso de boato atrapalha o combate a crises de saúde.
Documentário: Winter on Fire (2015)
Narra os protestos na Ucrânia e revela como versões oficiais tentam deslegitimar movimentos de rua.
Fechando a conta
Ficar na ilusão é tentador. Ela reduz a ansiedade no curto prazo e evita discussões complicadas. Mas a conta chega, e com juros.
Democracias murcham quando abdicamos do direito (e do dever) de duvidar. Economias quebram quando números inventados tomam o lugar de balanços honestos. E vidas se perdem quando bulas falsas substituem protocolos médicos.
O primeiro passo para mudar isso começa em casa:
Higiene informacional: confira a fonte antes de repassar, faça pausas para esfriar a cabeça, siga pessoas que pensam diferente e que tem uma boa reputação.
Apoio ao jornalismo: notícias custam dinheiro e tempo; se ninguém banca reportagem, surgem vazios prontos para teorias da conspiração.
Cobrança de transparência: líderes se comportam melhor quando sabem que alguém está olhando.
Ceticismo ativo: duvidar não é negar tudo; é perguntar “onde estão os dados?” "Mas isso faz sentido mesmo?” antes de aderir cegamente.
Que este texto funcione como um espelho para reconhecer nossas próprias zonas de conforto e, quem sabe, virar janela para enxergar além.
A verdade pode ser dura, mas é a única base firme para decisões que resistem ao tempo.
Fingir que ela não existe é construir castelos de cartas num chão que treme.