Democracia se pratica no cotidiano

No artigo anterior, falamos sobre como a democracia não se sustenta sozinha. Que confiar apenas nas instituições é um erro, e que cultivar uma cultura democrática viva, no dia a dia, é essencial.
Mas o que isso significa na prática? Como a gente leva esse compromisso para os nossos almoços, reuniões, grupos de amigos, jantares em família e até decisões de negócios?
É disso que quero tratar agora. Porque se tem algo que venho percebendo cada vez mais, é que democracia não é só sobre o que acontece nas urnas ou nos tribunais. Democracia se pratica, ou se enfraquece, nas conversas que temos, nas perguntas que fazemos (ou deixamos de fazer), nos silêncios que escolhemos e nas coragens que cultivamos.
A política que mora no cotidiano
Não estou falando aqui de grandes discursos nem de converter ninguém ao seu “lado”.
Estou falando de pequenos gestos, de posturas, de estar presente com atenção nas situações em que algo precisa ser dito.
Por exemplo: imagine que você está em um almoço de negócios e alguém, entre um brinde e outro, elogia a atuação de um líder político autoritário, alguém que ataca jornalistas, enfraquece as instituições ou persegue opositores. Pode parecer mais confortável deixar passar, seguir a conversa, não “estragar o clima”. Mas é aí que mora o perigo. É nesses silêncios que ideias autoritárias vão sendo normalizadas.
Não precisa ser um confronto. Às vezes, uma pergunta basta: “Você realmente acha que esse tipo de postura fortalece a sociedade no longo prazo?” Ou: “Será que não estamos abrindo mão de algo importante em nome de uma solução fácil?”
Essa forma de se posicionar não é sobre lacrar, vencer debates ou se sentir superior. É sobre cuidar. Cuidar do espaço comum, das ideias que circulam, do que estamos construindo juntos. É um gesto democrático.
Exemplos que fazem a diferença
Em reuniões estratégicas de empresas, é fundamental que líderes se perguntem: “Vale mesmo expandir nossos negócios para um país que persegue minorias ou criminaliza a liberdade de expressão?” Sustentabilidade, afinal, não é só ambiental. É também política e social.
Em rodas de amigos, aquela conversa mais leve pode ser um espaço precioso. Às vezes, uma boa pergunta, feita com curiosidade genuína, vale mais do que qualquer argumento direto. “Você já parou pra pensar em como seria viver sem poder se expressar livremente?”
No ambiente de trabalho, quando ouvimos comentários que relativizam discursos de ódio ou autoritarismo. Às vezes, vale a pena puxar um papo na hora do café ou no grupo interno da empresa, com um simples: “Você não acha perigoso normalizar esse tipo de fala? Já parou pra pensar onde isso pode levar?”
Nas redes sociais, ao invés de reagir com raiva ou ironia, uma abordagem respeitosa pode abrir espaço para reflexão. Um comentário como “Me preocupa ver esse tipo de coisa sendo defendida com tanta naturalidade. Podemos conversar sobre isso?” já pode desarmar o tom e reabrir o diálogo.
Na escola dos filhos, quando ouvimos de outros pais que “política não se discute com criança”. Podemos nos posicionar: “Mas será que educar pra democracia não é justamente ensinar a lidar com a diversidade de ideias com respeito?”
Em grupos de WhatsApp, quando circula aquele vídeo duvidoso ou aquele “textão” que tenta desacreditar eleições, imprensa ou instituições democráticas. Podemos, com calma, responder: “Gente, acho importante a gente checar essas informações. Democracia depende de confiança mútua e informação de qualidade.”
No consumo diário, ao escolher apoiar mídias e iniciativas que se posicionam de forma clara em defesa de direitos fundamentais e ao evitar financiar, mesmo que indiretamente, quem alimenta discursos de intolerância ou negação da democracia. O posicionamento também está nas escolhas silenciosas.
Na família, o terreno costuma ser mais sensível. É ali que muitas vezes nos deparamos com opiniões duras, repetidas sem filtro, ou baseadas em desinformação. Mas se a gente não consegue cultivar uma conversa respeitosa e firme dentro da própria casa, como esperar isso do resto da sociedade? Às vezes, a pergunta certa, feita com afeto e firmeza, pode ser mais eficaz do que horas de discussão. E mesmo quando parece que não surtiu efeito, uma semente pode ter sido plantada.
E está tudo bem se nem sempre conseguimos manter o tom ideal. Também já perdi a paciência. Já me exaltei, tanto em conversas em família como em ambientes digitais, onde tudo parece mais inflamado. Mas sigo tentando. Porque se não for assim, como será?
Esses momentos, por menores que pareçam, são onde a cultura democrática se sustenta ou se esvazia. E acredite, o que está em jogo vai muito além de uma discordância política.
O impacto é real e está perto de nós
A gente às vezes fala de “autocratização” como se fosse um processo distante, que acontece lá fora, em algum palácio ou gabinete. Mas o impacto é aqui. É agora. Está na vida de quem empreende e, de repente, se vê censurado ou pressionado.
Está na rotina de quem começa a ter medo de falar certas coisas. Está na incerteza jurídica e econômica que espanta investimentos e corrói a confiança sistêmica.
Tenho conversado com pessoas que, por conta de seus perfis ou opiniões, estão repensando em que país querem viver.
Gente que está avaliando se ainda é seguro, viável ou justo continuar seus negócios em determinados contextos.
Isso não é teoria. É vida real. E não podemos mais fingir que não nos afeta.
Famílias serão separadas, pessoas queridas serão impactadas, negócios serão prejudicados.
O silêncio também comunica
Não se trata de virar militante em tempo integral, mas de não se omitir quando o momento pede presença. De ter a coragem de perguntar, de conversar, de manter a escuta aberta e a mente ativa. Porque o silêncio também comunica e, muitas vezes, comunica consentimento.
A democracia precisa de gente comum disposta a agir com coragem cotidiana.
E talvez o primeiro passo seja só esse: não deixar passar batido. Fazer a pergunta. Puxar a conversa. Deixar uma pulga atrás da orelha. A cultura democrática nasce assim: conversa por conversa.