A democracia não se sustenta sozinha

Nos últimos tempos, temos pensado sobre o que estamos vivendo no mundo e, especialmente, sobre o que está em jogo quando falamos de democracia. Pode parecer óbvio, algumas vezes até repetitivo, mas é justamente o óbvio que estamos correndo o risco de esquecer.
A verdade é dura e simples: a democracia não sobrevive sozinha.
Durante muito tempo, talvez tenhamos acreditado que bastava confiar nas instituições. Que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário iriam, por algum mecanismo quase mágico, se equilibrar entre si. Que o sistema ia se regular por conta própria.
Mas isso está longe de ser verdade.
Estamos aprendendo, da forma mais dolorosa possível, que as instituições não funcionam no automático e que a democracia, para se manter viva, precisa de algo mais.
Esse "algo mais" se chama cultura democrática.
E não estou falando de algo teórico ou reservado a livros de ciência política. Estou falando de valores, conversas, posturas no dia a dia. Cultura democrática é quando falamos sobre democracia na mesa do bar, nas empresas, nos grupos de amigos, nos eventos e nas palestras.
E não falar teoricamente sobre o assunto, mas quando conseguimos identificar abusos, de qualquer poder, de qualquer grupo político, e nos posicionarmos contra. Dessa forma, podemos também compreender que há formas legítimas de contê-los. É quando a sociedade se vê como protagonista da democracia, e não apenas como espectadora.
Mas mesmo isso, como estamos vendo nos Estados Unidos, não parece ser suficiente.
Por lá, não podemos negar que existe uma cultura democrática forte: as pessoas participam de conselhos locais, fiscalizam contas públicas, discutem política em espaços comunitários. E ainda assim, essa cultura não impediu o avanço de forças autocráticas com enorme apelo popular e capacidade de ação como estamos acompanhando ultimamente.
O que falta, então?
Falta densidade. Falta quantidade. Falta mais gente se engajando na promoção ativa desses valores. Precisamos criar mais projetos, mais espaços e iniciativas que cultivem e espalhem a cultura democrática. Precisamos ligar os pontos entre quem já valoriza isso e fazer com que essas pessoas se encontrem, conversem, criem redes.
É importante lembrar também de onde viemos.
O Estado, como conhecemos, nasceu de forma autocrática. Sempre foi um instrumento de dominação. E foi justamente por isso que a democracia surgiu como a maior invenção humana de todos os tempos pois criou um jeito sofisticado e não violento de lidar com os conflitos inevitáveis da vida em sociedade.
Conflitos sempre existirão, e ainda bem, pois são sinais de vida. Mas a democracia ensina a resolvê-los com base em acordos, confiança e diálogo.
Fora da democracia, é onde estão as guerras.
Não é coincidência que os períodos de maior paz mundial coincidem com ciclos de expansão democrática. E, da mesma forma, as ondas de autocratização que vemos hoje não vêm sozinhas. Elas trazem consigo crises, violência, ruptura de acordos.
O mundo está vivendo uma dessas ondas, e já faz duas décadas que ela vem ganhando força. Os últimos anos, com tantos conflitos graves, são apenas o sintoma mais visível disso tudo.
Ninguém pode garantir que vamos sair dessa rapidamente. Mas se entendermos bem esses três pontos 1. que a democracia não se sustenta sozinha, 2. que a cultura democrática precisa ser cultivada ativamente e que 3. é preciso expandir a rede de pessoas engajadas nisso, talvez nossas chances melhorem.
No mínimo encontraremos quem compartilha desses mesmos valores. E isso, por si só, já é o começo de outras conversas, e quem sabe, de novas possibilidades.